Todas as Idades de Lindalva...

By | 13:07:00 2 comentários
Às vésperas de completar 70 anos, a corredora Lindalva Figueiredo me contou sua emocionante história...


Na foto, ela é acarinhada pela filha, Claudinha, em mais um domingo de corrida no Rio - arquivo pessoal
Amigos!

Todas As Idades de Lindalva...

-- Vai fazer seis anos que eu comecei a viver! - enfatizou Lindalva, ao telefone, quando era entrevistada por mim.

Fiquei imaginando sua expressão. A interlocutora tomou fôlego e passou a descrever sua rotina atual:

-- De segunda à sexta eu acordo às cinco da manhã. Depois pego o ônibus e vou para o Leblon ou Copacabana. Treino no Projeto Rio Praia Maravilhosa que tem assessoria esportiva nas areias. Nos finais de semana que não tenho competição, corro da Tijuca até o Horto, o Alto da Boavista ou o Cristo!... Não sinto preguiça - o que tenho que fazer, faço!... Não tenho cansaço!...

Lindalva vai completar 70 anos de vida e eu não poderia deixar de escrever sobre isso. O vigor de sua fala, no entanto, não denuncia os anos passados. Ela fala de sonho e suor como se fossem sinônimos... São os suores de hoje que relata com euforia.

Mas, Os Suores Passados?...

Mas eu também queria saber dos seus suores passados. Daqueles suores gotejados no solo fértil de Timbaúba, município localizado no interior de Pernambuco. Sem dó, fiz Lindalva viajar no tempo. Sair de um paraíso carioca que se descortinou, de fato, aos 64 anos, quando ela começou a correr. Levá-la de volta às durezas de sua terra natal, nas décadas de 50 e 60.

Foi na Zona da Mata pernambucana que Lindalva foi criada, com nada menos que nove irmãos. Logo cedo lhe deram uma enxada - mais precisamente aos cinco anos de idade:

-- Naquele chão dava de tudo!... - relata e complementa: -- Mas em terra de fazendeiro a vida era muito infeliz e sem futuro.

Seu pai não queria que filha mulher estudasse, por outro lado os filhos homens só tinham tempo para trabalhar. Seu pai também não permitia que os rebentos deixassem aquele chão, em busca de algo melhor. Mas um dia aquele chão calou a voz impositora de seu pai... Era início do emblemático 1970 e, antes mesmo que o ano acabasse, Lindalva decidiu deixar a roça.

Cabras, galinhas, rapadura e farofa...

Quando o ônibus da Itapemirim partiu da rodoviária de Timbaúba, rumo ao Rio de Janeiro, eram 11 horas da manhã de sábado, 19 de dezembro de 1970. Dentro dele estava Lindalva, sua mãe, seus irmãos e irmãs casados, juntamente com seus pares. Todos somavam dez. Para que sentassem nas poltronas daquele ônibus venderam cabras, galinhas e juntaram dinheiro. Para trás deixavam uma vida dura e cansativa. Pela frente teriam uma viagem dura e cansativa: a dureza e o cansaço ainda lhes acompanhariam... Vinte e cinco anos de dureza viajavam com Lindalva (e quantos anos duros viajavam com todos os passageiros daquele coletivo?).

As luzes do dia e da noite se revezavam nas janelas da condução. Ali penetrava um vento quente, às vezes fresco, que servia de alento ou respiro. Rapadura e farofa estocada, servia de alimento. Até que todos chegassem no Rio na segunda-feira, 21 de dezembro de 1970.

Pendurado na banca da Rodoviária Novo Rio, o Jornal do Brasil dava destaque ao sequestro de um embaixador suíço, na Glória, com participação do guerrilheiro Carlos Lamarca. Nada daquilo, no entanto, parecia afetar a vida daquele grupo de migrantes. Eles sequer sabiam ler e seu destino final estava bem longe dos bairros da Zona Sul. Rumaram para Inhoaíba, na Zona Oeste - a 60 quilômetros dali. Morariam entulhados numa casa de apenas dois cômodos, onde até então, só morava uma tia de Lindalva. Dormiriam embolados nos lençóis que se espalhariam pelo chão... Até que tudo se ajeitasse.

Logo Lindalva foi trabalhar de doméstica em Campo Grande, mas ficou só três meses no serviço, pois o seu patrão espancava a mulher. Arrumou outro emprego em Madureira, onde permaneceu por cinco anos e conheceu seu marido. Aos 28 anos ficou grávida, mas seu casamento não deu certo. Separou-se e foi trabalhar em uma residência na Praça Mauá - Centro do Rio. Continuou tocando a vida sozinha. Mas quando sua filha completou quatro anos, foi à procura do marido para registrá-la. Voltou a conviver com ele e foram morar em Senador Camará.

Como se Fosse Um carimbo...

Dias, meses e anos viraram décadas... O Jornal do Brasil continuava pendurado na banca da Rodoviária, mas não parava de trocar suas manchetes. A vida de Lindalva, no entanto, possuía sempre o mesmo texto, como se fosse um carimbo:

-- Continuei trabalhando como doméstica ou faxineira... Não saía para lugar nenhum!... Meus dois momentos de felicidade foram a festa de 15 anos e a formatura de minha filha.

Quando, em 2010, o Jornal do Brasil deixou de ser publicado, os tempos já eram outros: Guerrilheiros haviam virado governantes, bancas de jornais viraram bombonières... Logo na época em que Lindalva estava, enfim, se alfabetizando, foi que os jornais resolveram acabar?!... Não, não é bem assim... É que as notícias se libertaram do papel, feito Lindalva que há 45 anos desenraizou-se de uma fazenda longínqua!... É que hoje, Lindalva não fere mais o chão com golpes de enxada, mas beija-o com seus tênis! Cada passo que dá, numa corrida, é um beijo de gratidão! Um acalento na terra que não calou o grito mudo de seus sonhos, como um dia calou seu velho pai.

Lindalva aposentou-se em 2005, aos 60 anos, mas continuou fazendo faxinas. Teve problemas de pressão arterial e procurou um médico, aos 64. O médico recomendou que fizesse caminhadas. E foi aí que a sua vida começou, enfim, a mudar...

Sua filha Claudinha, que já era corredora, começou a levar Lindalva para caminhar no Aterro. Enquanto a mãe caminhava, Claudinha corria. Lindalva adorou, mas queria mesmo é correr. Fazia isso escondido da filha, aproveitando dos momentos que a mesma dobrava uma curva. Para sua alegria, o médico liberou a corrida que sua filha parou de controlar.

Matriculou-se no colégio Santo Inácio, onde foi galgando cada série do ensino fundamental. Deixou de pegar ônibus pela cor e começou a se comunicar melhor com as pessoas e o mundo.

Todas as idades de Lindalva hoje correm com ela. Todos os seus tempos tolhidos vão com ela estudar. Imaginei, comigo mesmo, que no Colégio Santo Inácio ela fosse uma das alunas mais queridas. Quis conferir, conversando com uma professora. Quis perguntar à sua mestra:

-- Você conhece a história de Lindalva, tanto quanto conhece as histórias dos outros heróis dos seus livros?

Quis saber:

-- Qual é a sensação de uma professora ao instruir uma aluna que tem muito mais para lhe ensinar?

Mas eu não consegui falar com a mestra. Consegui apenas uma mensagem no celular, dizendo:

-- Olá! Estou em Sala... Será um grande prazer testemunhar sobre uma pessoa tão iluminada como D. Lindalva... Abraços, Fabiane.

Pensando bem, foi melhor assim... Melhor não ficar esmiuçando mais detalhes ou essa postagem não tem fim!...


Lindalva atrai olhares ao completar a Golden Four Asics 21 km, na Praia de São Conrado, no Rio.

A Represa Lindalva!

Conheci Lindalva Figueiredo em 2014. Foi num treinão muito puxado e concorrido, de subida às Torres da Serra do Mendanha - recanto desconhecido para a maioria dos corredores cariocas. Duvidei, em pensamento, que aquela senhora pudesse vencer o duro percurso inclinado. Eu estava totalmente enganado... Só agora sei que a juventude de Lindalva ficou, durante décadas, represada no corpo e na alma. Agora vislumbro sua emoção quando me disse:

-- Faria por tudo de novo para ter a vida que tenho hoje!

Considero essa frase fantástica, quando vinda de alguém que beira 70 anos de idade. Considero que Lindalva resgata, hoje, todas as suas idades, a tempo de ser feliz. Pelo asfalto, seus sonhos se misturam aos sonhos dos jovens atletas que lhe rodeiam. Pelas trilhas, ela goteja o mesmo suor de companheiros que poderiam ser seus netos. Sua voz se mistura às vozes dos corredores de idade mediana, enquanto seus pés se afundam nas areias que bordam o mar.



Lindalva e seus amigos, pouco depois de completar a Subida do Cristo


Por telefone, pedi que Lindalva encerrasse essa postagem transmitindo a todos uma mensagem, e ela falou:

-- A vida é boa e maravilhosa quando a gente dá valor a ela... Quando a gente faz o que gosta é melhor ainda!


Atualização da postagem  (em 12-02-18):

Depois desta postagem, D. Lindalva foi se tornando cada vez mais conhecida dentro e fora da corrida. Completou a Maratona do Rio, nos anos seguintes, onde tem o privilégio de fazer o aquecimento junto com os atletas de elite. Várias matérias foram publicadas sobre ela, em jornais e TV, nenhuma com tantos detalhes quanto essa.


( Esta postagem foi reproduzida integralmente pelo blog PULSO, do Jornal O Globo, confira clicando no link: http://blogs.oglobo.globo.com/pulso/post/todas-idades-de-lindalva.html?utm_source=Facebook&utm_medium=Social&utm_campaign=compartilhar )

Abraços!
Bira.

Postagem mais recente Postagem mais antiga Página inicial

2 comentários:

Unknown disse...

Linda história! Muito emocionalmente!

Unknown disse...

Linda história! Muito emocionalmente!