As Aventuras de BiraNaNet - Parte II

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(...) Surpreendeu-se ao deparar, dentro do cemitério, com ruas compridas e desertas, que mais pareciam pistas de corrida margeadas pelos túmulos. Imediatamente lembrou que já não corria, há muito tempo, e decidiu fazê-lo ali mesmo, naquela hora (...) - trecho.

Antonio Carlos passando em frente ao Coliseu - foto de arquivo pessoal.
Amigos!

Segue a bela história de Antônio Carlos de Carvalho - corredor mineiro radicado em Roma, em...

As Aventuras de BiraNaNet - Cap. I - Parte II

a) "POSSO PARTICIPAR DESSA CORRIDA?"
Estamos em maio de 1982, no complexo esportivo do Grupo Santista, na Zona Oeste de São Paulo. É manhã domingo e as provas de atletismo da Fábrica de Tecidos Tatuapé estão para começar. Antonio Carlos de Carvalho, um jovem funcionário da fábrica, ignorava o evento. Ele tinha acabado de chegar ao local apenas para jogar futebol, como fazia todo domingo. Daquela feita, no entanto, percebeu um movimento incomum na pista de atletismo e se aproximou para observar alguns corredores que ali aqueciam. Quando deu conta que iniciaria uma competição, pediu para participar, alegando que também trabalhava na empresa. Resumindo o que veio a seguir: ele, que nunca correra antes, simplesmente ganhou duas competições, de 1.500 e 3.000 metros, e foi convidado a entrar na equipe de corredores do Grupo Santista.

Um ano depois, já totalmente convertido do futebol para a corrida, Antônio Carlos estava obtendo bons resultados em competições. Certo dia foi treinar sozinho no Parque Piqueri, localizado também no Tatuapé, quando avistou corredores do Corinthians se aquecendo. Aproximou e repetiu o pedido feito, há um ano, no campeonato de atletismo:

-- Posso participar?...

Desta feita, no entanto, o treinador do Corinthians - José Roberto - encarou o intruso e disse:

-- Aqui, com nós, você vira atleta ou morre!... - E o riso foi geral.

Para Antônio, a risada coletiva soou como o ranger de uma imensa porta se abrindo. Ele teria a oportunidade de correr com grandes atletas!... Mas, no grupo, foi logo foi apelidado de Cheira-meia, já que era o último da fila, durante os treinos. Antônio não se importou com o apelido e continuou ganhando experiência ao treinar com corredores de elite. Certo dia, o técnico aplicou um treino que envolvia toda a equipe. Ao todo seriam percorridos 18 km numa pista, da seguinte forma: Os primeiros 9 km seriam corridos no ritmo de 4 min por km (4X1) e os 9 km finais, no ritmo de 3 min por km (3X1). A cada 3 km, os atletas teriam um minuto de intervalo para recuperação... Vamos ao treino:

b) A REDENÇÃO DO CHEIRA-MEIA!
Depois da largada, Antônio (Cheira-meia) assumiu o seu lugar no fim da fila, continuando ali por toda primeira etapa. Ele sentia que estava num bom dia, mas não quis se precipitar e acelerar antes da hora. Nos 3.000 metros finais, Cheira-meia resolveu acelerar e ultrapassar cada membro da equipe. Até quem tentou resistir foi batido por ele. Seu técnico sorria ao vê-lo rodando muito abaixo dos 3X1. Naquele momento, o Ex-Cheira-meia ganhou respeito e entrou, de fato, para equipe do Corinthians e participou de todas as provas seguintes!

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Com a equipe ganhou prêmios ao vencer provas no interior de São Paulo e Sul do Brasil. Vieram os patrocínios trazidos pelo programa de incentivo ao esporte do Governo Federal. Com a melhoria de vida casou-se, em 1985. Cinco anos após o casamento, no entanto, mudou o governo e a lei de incentivo foi abolida para ele e outros 200 atletas. Justamente quando já era pai, Antônio viu seus rendimentos reduzidos a dois salários mínimos mensais! Viu que seria impossível sobreviver com a família em São Paulo... Era 1992, o mesmo ano que a Ministra da Fazenda, Zélia Cardoso de Mello, aterrorizou o Brasil com o confisco da caderneta de poupança. Foi quando Antônio abarrotou suas malas e retornou com a família para o interior de Minas Gerais.

Foi morar em João Monlevade, cidade vizinha a São José do Goiabal, onde nasceu. Lá tentou de tudo: vender pastel, sucos de frutas e concursos públicos, mas nada deu certo. Apesar dos problemas, criou um grupo de corredores locais, denominado ACORP - Associação de Corredores de Pista e Rua. Mas isso não lhe dava sustento, apenas alegrias - que não pagam as contas. No início do ano seguinte, 1993, Antônio decidiu vender sua moto e comprar passagens aéreas para Roma, capital da Itália, onde tentaria arrumar trabalho e dinheiro.

c) PERAMBULANDO NAS RUAS DE ROMA...
Antônio foi sozinho para Itália com dinheiro para pagar apenas três meses de aluguel. Seu plano seria conseguir biscates como servente de pedreiro. Por isso ficava em frente às lojas de material de construção, de manhã, onde os empreiteiros costumavam contratar ajudantes temporários, mas nada conseguiu. Economizava fazendo refeições gratuitas na Caritas de Roma. Depois, perambulava pelas ruas para aprender o idioma, pois na casa onde morava só residiam brasileiros. Diferente de Antônio, o tempo não parou de correr e nem o pouco dinheiro que tinha parou de minguar... O ex-corredor não via o dinheiro lhe tocar às mãos, mas via o tempo escorrer entre seus dedos.

Quando o sol de Roma se recolhia, uma lua deprimida surgia diante de seus olhos trazendo o medo, a insônia e a depressão. Alguns dos brasileiros que residiam com ele bebiam, fumavam ou se drogavam à noite. O ambiente não era propício a ninguém, muito menos a um atleta. Então, ele voltava a andar pelas ruas, às altas horas da noite, até que o sono batesse e lhe levasse de volta para casa. Em um desses dias, caminhava rente ao Cemitério de Verano, quando percebeu que uma parte de seu muro estava quebrada. Era mais uma fria madrugada de março de 1993 e a cidade dormia. Seria improvável que alguém quisesse entrar no cemitério naquele momento, mas Antônio parecia atormentado demais para temer assombrações e entrou no cemitério pela falha do muro.

d) CORRENDO NO CEMITÉRIO...
Surpreendeu-se ao deparar, dentro do cemitério, com ruas compridas e desertas, que mais pareciam pistas de corrida margeadas pelos túmulos. Imediatamente lembrou que já não corria, há muito tempo, e decidiu fazê-lo ali mesmo, naquela hora... Pôs-se a correr entre os ciprestes sombrios e as estátuas de anjos que ornamentam as sepulturas... E foi assim: em meio á quietude do cemitério e um turbilhão de incertezas que Antônio estava de volta à corrida!

Retornou ao cemitério para correr, todas as madrugadas. Desesperou-se quando restavam apenas 15 dias de aluguel pago. Foi caminhar pelo centro de Roma e entrou num bar, reduto de brasileiros. Ali conheceu Brandão, mineiro de Governador Valadares, com quem desabafou. O pedreiro Brandão anotou seu telefone e prometeu lhe contratar como ajudante. Antônio encheu-se de esperança e nem precisou correr no cemitério, naquela noite, para resgatar o sono. De manhã, foi caminhar sobre o gramado da Villa Pamphilj. No imenso parque avistou uma concentração de corredores se preparando para competir...

e) "POSSO PARTICIPAR DESSA CORRIDA?... (DE NOVO!) "
Sem que Antônio sequer pensasse, suas pernas lhe conduziram para o local onde os atletas se aqueciam. Sem precisar sequer falar italiano direito, sua boca pronunciou o pedido: "Posso participar?"... Sim, ele pôde e correu muito bem, chegando na terceira colocação, para surpresa geral. A seguir foi convidado a entrar na equipe da Roma Sprint.

Dois dias depois, o pedreiro Brandão lhe ligou oferecendo trabalho prometido e outra casa para morar. No novo lar os demais moradores não se drogavam. Permaneceu trabalhando com Brandão, até que Stephano Amadei, presidente da Roma Sprint e empresário da construção o empregou.

-- Foi aí que juntei o útil ao agradável - relatou Antônio -- Voltei a ser atleta de ponta e transformei todas as premiações que obtinha em material esportivo que enviava para ACORP (aquela equipe que eu havia fundado em João Monlevade, pouco antes de se aventurar na Itália) explicou.



f) QUEM TEM BOCA VAI A ROMA, QUEM TEM CORAÇÃO VOLTA A MINAS!
Assim que pôde, retornou ao Brasil para passar um mês e matar saudade da esposa e filho. Dois anos depois, 1997, teve condição de levá-los para viverem na Itália, onde nasceu sua filha mais nova. Nosso atleta aventureiro me revelou que sonha envelhecer onde nasceu. São José do Goiabal não possui um cemitério como o de Verano, onde até o papa realiza missas. No entanto, sua cidade é famosa por abrigar o túmulo do Padre Ermelindo, de onde mina uma água milagrosa (vide reportagem).


-- Infelizmente, quando vim sozinho para a Itália, perdi quatro anos da infância de meu filho - lamenta Antônio, mesmo sabendo que não teria outro jeito.

g) A AJUDA QUE VEIO DE ROMA.
A ACORP - grupo de corredores de João Monlevade, que Antônio fundou - continuou crescendo com a ajuda que ele enviava da Itália. Quando atingiu 80 jovens e crianças, em 2003, ficou difícil mantê-la sozinho. A solução foi fundar a ACORP-Roma, que recolhia material esportivo de seus amigos italianos para enviar para o Brasil.

Em 2004, Antônio Carlos comprou um terreno em sua cidade natal para que fosse fundada a ACORP-São José do Goiabal, destinada a promover o esporte e assistir crianças carentes. Várias crianças mineiras foram adotadas à distância por seus amigos italianos com a doação um valor fixo e mensal.

Em 2007, trouxe o amigo Giuseppe Giampaoli e mais dois italianos para conhecer o Brasil e seus adotados.

Em 2009 a irmã de Giuseppe se casou, na Itália, e no lugar de presentes pediu aos convidados que fizessem doações para o início das obras da sede da ACORP-São José do Goiabal.

Sede da ACORP-São José do Goiabal.


Em 2011, trouxe 10 italianos que além de conhecer as crianças, participaram da Corrida de São José do Goiabal, feita por ele.

Em 2013, foi minha vez de conhecer a cidade e essa surpreendente história de Antônio (vide parte I). Naquele momento, a Europa já atravessava uma crise financeira e a quantidade de adotados havia caído um pouco. A sede da ACORP continuava em obras.

h) BATE PAPO NO MESSENGER...
Em 2016, eu quis reescrever esta história e enviei algumas perguntas para o nosso herói, que continua em Roma, via messenger do Facebook:

-- Bom dia, Antônio... Estou reescrevendo as postagens que fiz sobre você. me confirma a sua idade.

-- Olá meu amigo, hoje tenho 53... Mas estou te esperando em agosto, em Goiabal. Desta vez vai ficar hospedado na Casa de Miguel (sede da ACORP) - convidou.

-- Me diz como ficou a obra... Está concluída?

-- A casa está toda pronta. Agora estou construindo um salão de festas ou academia na parte de cima, para as crianças usufruírem melhor o espaço.

-- Me diz outra coisa: Eu lembro que a crise econômica estava fazendo o número de adotados cair, há três anos... Como ficou agora?

-- Caiu muito... Atualmente são 28 crianças adotadas e partindo deles abri uma escolinha de atletismo. Uma vez por mês a rua (em frente à sede) é fechada para uma jornada de esporte e atletismo.

-- Quantos italianos colaboram com o projeto?

-- São alguns amigos íntimos do Giuseppe, que você conheceu, e toda a sua família. Em agosto ele vai comigo ao Brasil pela sexta vez. Já virou um membro de nossa família.

Na foto, Antônio Carlos e o italiano Giusepe, ao centro, margeados pela esposa e filho com camisas amarelas.

-- Qual é o seu sonho para este projeto?

-- Estou pensando e vou oferecer à APAE de Goiabal um espaço para as crianças portadoras de deficiências físicas, que atualmente são 20 dos quais quatro já fazem parte da adoção à distância... Gostaria também de envolvê-los no atletismo.

-- Que tipo de atividade esportiva são feitas e quantas crianças participam?

-- Brincadeiras e corridas para mais de 100 crianças atualmente. Para uma cidade pequena, como a nossa, é um bom número!

i) O PODER DE QUEM CONFIA!
Encerrei o papo, mas fiquei refletindo sobre momentos da história de Antônio. Ele, que confiou em si mesmo, quando certo dia pediu para participar de uma simples corrida, na fábrica de tecidos. Ele, que repetiu esse gesto e, com isso, entrou numa equipe esportiva de elite... E, por fim, ele, que na terceira vez que pediu para correr conquistou amigos que nem falavam sua língua... É bem possível que a Confiança seja uma língua universal. É certo que Antônio Carlos de Carvalho domina esse idioma!

Abraço!
Bira.


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