Além do Blog II - Meu País: Maratona

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(...) Encontrei tudo muito diferente no mundo da corrida. A atividade antes vista com estranheza virou moda. Os corredores já não eram chamados de "doentes mentais" e sim de "gente saudável" (...)

A série"Além do Blog" traz novas maneiras de contar as histórias já descritas aqui. Em "Meu País: Maratona", a emoção de superar os 42 quilômetro da grande prova... 

Além do Blog II - Meu País: Maratona

Amigos!

Esqueça tudo que você entende de corrida de rua hoje: Esqueça das suas camisetas e bermudas tecnológicas que não retêm suor. Esqueça dos seus tênis importados que se adaptam ao formato do pé. Esqueça do seu frequencímetro Garmin que localiza o satélite para medir o percurso. Esqueça até mesmo dos seus fones de ouvido. Esqueça, sobretudo, dessa grande quantidade de amigos corredores que treinam contigo...

Pronto, agora você está em 1985 e corre sozinho na beirada do asfalto. Seus tênis são feitos de lona azul e têm sola dura de borracha. Sua camiseta é branca de algodão. Ela vai ficar encharcada de suor, vergonha e raiva, quando alguém lhe chamar de maluco na rua...

Isso mesmo, em 1985 e só os "loucos" corriam, enquanto as "pessoas normais" davam longas tragadas em seus cigarros, imitando os atores de Hollywood e desportistas dos um comercias de TV (confira o vídeo). Existia apenas uma revista (a Viva) especializada em corrida e a internet, com seus sites e blogs sobre o tema, só explodiria entre 10 e 15 anos depois. Aqui no Rio, o jornalista pioneiro neste assunto foi José Inácio Werneck, no Jornal do Brasil. Foi na sua coluna que me inspirei para participar da minha primeira maratona: A Maratona do Rio'85. Sem ter nenhuma noção do que encontraria pela frente, comprei um belo par de tênis branco e me inscrevi para a grande prova, repleta de corredores da elite internacional.

Quando o sol começou a descer atrás dos prédios que margeiam a Praia do Leme era tarde-sábado de junho-85. Os acordes do Bolero de Ravel se elevaram sobre seis mil corredores espremidos e ansiosos no corredor de largada. Foi um tiro de canhão que provocou o estouro daquela manada. Meu choro, ali no meio, também não se conteve e tentou denunciar inutilmente a todos minha emoção. As largada e chegada daquela corrida foram momentos marcantes na minha vida. Para completar a prova, no entanto, intercalei entre correr e caminhar por longas de 5 horas e 28 minutos. Eu não tinha experiência nem feito um único treino para chegar ali. Entrei na maratona pela janela e acabei sendo fisgado: No ano seguinte voltei a fazer a Maratona do Rio além de São Paulo. Depois parei por nada menos que 22 anos!...


Comerciais, impensáveis nos dias de hoje, associavam cigarros ao esporte... Naquele contexto, "maluco" era quem passasse correndo na rua: "Ao Sucesso!..."


Voltei a correr em 2008 e em 2010 fiz a Maratona do Rio. Encontrei tudo muito diferente no mundo da corrida. A atividade antes vista com estranheza virou moda. Os corredores já não eram chamados de "doentes mentais" e sim de "gente saudável". Ignorei que já não tinha mais vinte e tantos anos, e vesti roupas coloridas, e ganhei identidade de atleta. O que não mudou foi o encanto e a felicidade que a prova desperta. Regularmente treinado, aos 50 anos, concluí a Maratona do Rio em 3 horas e 36 minutos. O choro na chegada não foi suficiente para dissipar minha emoção. Ao chegar em casa, entrei no Orkut - que ainda era usado na época - e escrevi o seguinte texto:

 A MARATONA É COMO A VIDA

A maratona é como a vida: Nos primeiros quilômetros, ainda no Recreio dos Bandeirantes, enquanto à nossa direita víamos violentas ondas se erguerem do mar, transformando aquele azul eterno na branca espuma que logo morre na areia, do outro lado da estrada onde corríamos, havia um o mato verde, calmo e fecundo, sob o manto do orvalho, num dos trechos esportivos mais belos do mundo. 

Recebíamos contra o peito fortes lufadas de vento e, mesmo neste momento supremo, eu consegui me preocupar... Tentei vislumbrar além da estrada o meu destino - O Aterro do Flamengo - e pensei: "É longe demais!... Não dá pra ver ou calcular, atrás de qual montanha distante e esbranquiçada está a linha de chegada..."

Tal qual ocorre na vida, não daria para assegurar o resultado. Era preciso, simplesmente, viver cada passada. E assim perceber que aquele vento frio, matinal de inverno à beira-mar não era o bastante para nos congelar, apenas refrigerava. Nosso sangue estava quente e expelia o calor e energia, e expulsava o suor. Se por um lado perdíamos sais minerais, por outro, nos desfazíamos de toxinas. Poderíamos recuperar os sais no próximo posto de hidratação, sorvendo um isotônico, mas as toxinas, que ficassem pelo caminho - pisoteadas no asfalto como copinhos de água mineral.

Sim! Nós maratonistas somos privilegiados pois colhemos ao longo de 42km de estrada os frutos do que plantamos no asfalto e que regamos com o próprio suor, dia a dia, treino a treino. Ao fim da maratona, passadas 2h50min, ou 3h25min, ou 4h20min... não importa o tempo de cada um, cruzamos a linha de chegada para descobrir que a felicidade sempre esteve ao nosso lado, pelo caminho. Ela esteve no olhar de um amigo - feito ali mesmo naquele trajeto - ou no sentir o vento, ou no pisar no asfalto, ou no ouvir o barulho do mar, ou...


A maratona é como a vida: Longa e desgastante para quem não percebe a brevidade da onda, que se desfaz na espuma, que se chama felicidade, que morre e renasce a todo instante #


Meu País: Maratona


Continuei a correr maratonas (42 km) em Porto Alegre, Buenos Aires, Rio de Janeiro e Buenos Aires de novo. Depois andei lesionado e me limitei às corridas mais curtas, mas nada é como uma maratona!... Pensando melhor, a Maratona não é uma prova e sim um lugar. Um lugar que se desloca pelo mundo e abriga pessoas felizes, mesmo que estejam em sofrimento físico. A Maratona é minha terra! Quando eu digo "sou maratonista", refiro-me à minha nacionalidade. Meu país Maratona abriga pessoas das mais diversas raças, culturas e níveis sociais. Meu país Maratona me torna igual, lado a lado os com demais corredores, trocando forças pelo difícil trajeto. Lembro-me de quando completei a Maratona de Buenos Aires 2010 e não contive um forte choro, após cruzar a linha de chegada. Um argentino que veio logo atrás me amparou com um abraço de irmão, dizendo não menos emocionado que eu:

- Campeón... Eres un campeón!...

Desabei em soluços sobre seu ombro solidário e depois nunca mais o vi. Meu irmão argentino e eu somos maratonistas, habitantes de um mesmo país que tem 42.195 metros de emoção. ##

Abraço!
Bira.







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3 comentários:

Anderson - Camelo do Deserto disse...

Olá Bira !! Realmente mudou muita coisa o esporte em geral !! Belo texto e parabéns !!!

Unknown disse...

Não tive o privilégio de viver essa experiência antiga mas tão oportuna q vc teve, puxa vida! A coragem e a oportunidade vieram agora, coisa de 2 anos e obviamente não terei mas a chance de viver o q vc viveu. Mas percebo q a maratona tem mesmo esse poder de desafiar e encantar pessoas. Ensaiei as duas últimas maratonas do Rio e digo ensaiar pq os tempos foram longos e ainda não perdi o medo, mas é daquele
medo q impulsiona. Abçs

Jaison Raboch disse...

Parabéns pelo texto, muito bom!
Fiquei com a ainda mais vontade de completar a Maratona de Florianópolis 2014 e sentir toda essa emoção.