Correndo no Cemitério (Antônio, Boca e Coração - Parte I)

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"(...) E Antônio Carlos lembrou que era atleta e às duas da madrugada, entre as esculturas de anjos e os sombrios e ciprestes, pôs-se a correr no campo dos mortos(...)"


Correndo no Cemitério


Montagem com foto pessoal de Antônio Carlos de Carvalho correndo no Cemitério de Verano, em Roma.

Amigos!

O frio intenso, da madrugada, circulava pelas ruas desertas de Roma e tinha um único companheiro: o brasileiro Antônio Carlos de Carvalho. Era março de 1993 – mês de inverno rigoroso e temperaturas tão baixas quanto a postura de cabeça daquele caminhante noturno, pelos arredores do Cemitério de Verano. Se a cidade dormia tranquila, Antônio não tinha a mesma sorte. Suas preocupações espantaram seu sono mais uma vez e caminhar pela noite foi um jeito de tentar resgatá-lo. Deprimido e se sentindo só, apesar de residir numa casa com mais oito brasileiros que, como ele, buscavam emprego em Roma. O ambiente na casa não era bom, melhor a companhia do frio. Alguns de seus amigos se drogavam ou ficavam embriagados e ele só tinha o dinheiro suficiente para pagar mais um mês do aluguel que dividia. Se não arrumasse biscates logo, voltaria frustrado para o Brasil onde ficaram esposa e filho.

Ao seu lado, o muro alto e imensamente longo do cemitério parecia intransponível. Perdido nos pensamentos Antônio caminhava e olhava para a parede de tijolos expostos, até que surgiu uma parte de muro quebrada, formando um acesso improvisado. Transpôs a passagem e deparou com ruas lisas e desertas, circulando e entranhando as quadras de túmulos. O brasileiro de São José do Goiabal, interior mineiro, não teve medo de assombração - ele já possuía seus próprios fantasmas... Lembrou que era atleta e às duas da madrugada, entre as esculturas de anjos e os sombrios e ciprestes, pôs-se a correr no campo dos mortos.

ONZE ANOS ANTES

Estamos maio de 1982. É manhã de um domingo de sol no bairro do Tatuapé, Zona Leste de São Paulo. Os funcionários do Grupo Santista chegam afoitos para o campeonato de atletismo da empresa, no complexo esportivo situado atrás da fábrica de tecidos. Entre eles está o jovem Antônio Carlos, que fora ali, apenas para jogar futebol. Ao chegar, no entanto, viu vários corredores se preparando para iniciar uma competição de pista. Curioso, aproximou-se e perguntou se poderia participar. Poderia; e sem nenhum preparo ganhou as duas corridas, de 1.500 e 3.000 metros, além de um convite para compor a equipe de corredores da Santista, feito por um impressionado treinador. No ano seguinte, o atleta já obtinha bons resultados nas competições e, certo dia, estava treinando no Parque Piqueri, quando avistou a equipe de corredores do Corinthians. Ousou se aproximar e pedir para fazer parte. Como resposta, o rigoroso treinador José Roberto lhe encarou e disse:

- Com nós você vira atleta ou morre! - para riso geral.

Tal resposta soou como um incentivo para Antônio Carlos. Era sua oportunidade de treinar com grandes atletas. Estaria entre os feras!... Mas foi logo apelidado de Cheira-Meia, já que era o último da fila nos treinamentos e competições. O Cheira-Meia continuou ali, ganhando experiência entre seus pares da elite. Certo dia, o técnico aplicou um treino que envolvia toda a equipe. Ao todo seriam percorridos 18 km na pista, da seguinte forma: Os primeiros 9 km seriam corridos no ritmo de 4 min. por km (4X1) e os 9km finais, no ritmo de 3min. por km (3X1). A cada 3 km, os atletas teriam um minuto de intervalo para recuperação.

A largada foi dada com toda a equipe e Cheira-Meia assumiu o lugar que lhe cabia, no final da fila. Ao término da primeira etapa, Cheira-Meia continuava na rabeira, mas sentia que estava bem e não quis se precipitar, seguindo na retaguarda. Quando o treino atingiu os 3.000 metros finais, o desgaste dos atletas já era evidente. Cheira-Meia simplesmente resolveu passar um a um, deixando para trás até quem tentou resistir. Seu técnico sorriu percebendo que o atleta,  nas últimas voltas, havia rodado muito abaixo dos 3X1 estabelecidos. A partir de então, o Ex-Cheira-Meia ganhou respeito geral, sendo convidado para todas as provas e torneios onde estaria a equipe.

Ao entrar para a elite, Antônio Carlos participou de corridas na Capital e Interior paulista, além do Sul do Brasil. Ganhou prêmios e patrocínios em consequência de um programa de incentivo ao esporte do Governo Sarney.  Somou esses rendimentos ao salário percebido na Santista e pôde se casar, em 1985. Cinco anos depois, com a troca de governo o programa de incentivo foi cortado e ele figurou entre os mais de 200 atletas órfãos. Não seria possível sobreviver em São Paulo, em 1992, mantendo mulher e filho, com os pífios dois salários mínimos que recebia na Santista. Enquanto a ministra Zélia Cardoso de Mello assustava o Brasil com o confisco da caderneta de poupança, Antônio abarrotou suas malas e partiu com a família de volta para João Molenvade, cidade vizinha à São José do Goiabal - onde nasceu.

Em João Molenvade, tentou vender pastéis e sucos de fruta, enquanto prestava concursos públicos para vários órgãos, sem obter sucesso. Formou um grupo de corredores com objetivo de atrair jovens e crianças carentes, denominando-o  ACORP - Associação de Corredores de Pista e Rua. As alegrias da corrida pelo interior, no entanto, não pagavam dívidas. Foi quando, no início de 1993, Antônio decidiu vender sua moto e comprar passagens para Roma, onde tentaria arrumar trabalho e dinheiro.

Antônio chegou à Itália com o dinheiro suficiente para três meses de aluguel. Economizava ao fazer refeições gratuitas na Caritas de Roma. Permaneceu dois meses em frente às lojas de materiais de construção, se oferecendo como ajudante de pedreiro, sem nada conseguir. Quando não estava ali, perambulava pelas ruas para aprender o idioma, já que na casa em que morava só havia brasileiros. Se o dinheiro não lhe tocava às mãos, via o tempo escorrer entre seus dedos. Quando o sol de Roma se deitava uma lua deprimida surgia diante de seus olhos trazendo o medo, a insônia e a depressão. De repente, o muro quebrado do cemitério lhe convidou a entrar e deparar, com a inusitada pista. Só lhe restava correr pelo campo santo e tentar exumar as emoções de seus melhores dias. Mesmo que fosse duas horas de uma madrugada fria. Mesmo que seu público visível fossem as imóveis estátuas e o invisível não pudesse se manifestar. Mesmo com tudo isso, Antônio Carlos de Carvalho estava de volta ao atletismo!

... Continua na Parte II

- Link para conferir as três postagens desta série Antônio, Boca e Coração!: 
http://www.birananet.com/search/label/Antonio%20-%20Boca%20e%20Cora%C3%A7%C3%A3o


Abraços!
Bira.


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1 comentários:

Superpinguim disse...

Parabéns Bira!

Muito interessante a história do corredor Antônio Carlos de Carvalho, me identifiquei com esse artigo por três grandes coincidências, a primeira é que eu fui um dos primeiros maratonistas do Brasil que faz parte do treinamento no Cemitério de Vila Formosa (o Maior da América Latina e que parece muito mais com um grande parque), a segunda é que há muitos anos também tenho o hábito de treinar no Parque do Piqueri no Tatuapé, nesse caso gosto de treinar com a Equipe Marcorrer do Professor Marco Antônio Pinto, e a terceira coincidência é que eu sou o fotógrafo oficial da Corrida do Fogo Simbólico que começa no Museu do Ipiranga e vai até o Clube do Corinthians. Um grande abraço!!!