Atiradores de Pérola - Parte II

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(...) Quando acordou, César se espreguiçou esticando os braços e estufando o peito. Parecia um imperador do deserto contemplando seu reino de barro (...)

Lágrimas são Pérolas - Montagem com recortes de imagens da internet - Bira, 2013.

Atiradores de Pérola - Parte II

Amigos!

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Parte II - O Choro Faz Germinar Pérolas Latentes...


Outra semana se passou e o barro seco avançou sobre o oásis que foi reduzido a menos da metade - uns 200 m2. A lagoa ficou com apenas 4 metros de diâmetro. Roberto e Altair não retornaram. Os 19 habitantes que ali ficaram já não tinham emoção ou demonstravam desespero. Já não sentiam nada além de inveja dos que se foram junto com a cidade - numa espécie de morte sem dor.

César, o mestre de MMA, no entanto abriu mão dos escrúpulos e resolveu liderar seu grupo de alunos para dominar o local. Primeiramente, os sete homens ordenaram que toda comida lhes fosse entregue. A partir dali, todos os demais receberiam uma parca ração diária. Ninguém teve forças ou ânimo para se opor. Nem mesmo os jovens jogadores do Acesita Esporte Clube.

Naquela noite, César reuniu seu grupo em volta da fogueira, onde assaram os últimos peixes retirados da lagoa e se apossaram das quatro garrafas de uísque que Chico, o bebum, escondia entre os trapos como tesouro. Gargalharam ao ver o sofrimento do velho alcoólatra observando seu precioso líquido ser consumido por bocas alheias, provocando a cada gole, caretas impiedosas nos componentes da recente gangue. O bando não precisou secar todas as quatro garrafas para se encorajar e promover um estupro coletivo em Aline. A mulher ainda tentou resistir, em vão, e feito as garrafas de uísque, foi brutalmente consumida pelos sete homens. Como os goles da bebida que queimando as gargantas distorciam as faces, o contato com a vulva da jovem provocava nos homens caretas de um diabólico prazer. De todos os jeitos, a mulher foi impiedosamente violada.

Na manhã seguinte, o bando sentia-se poderoso e saciado. Desapareceu das suas almas o desejo de morrer. Morrer para quê, se o pouco que sobrou do mundo lhes pertencia? Quando acordou, César se espreguiçou esticando os braços e estufando o peito. Parecia um imperador do deserto contemplando seu reino de barro. Sem dizer palavra sentiu que tudo aquilo era seu e com olhar brilhante de orgulho se desintegrou no ar, seguido de todo o seu bando. Quinze dias depois do grande desastre, sete pessoas voltavam a sumir em Timóteo.

Aliviados e famintos, os habitantes do oásis se atiraram sobre os mantimentos que o bando havia apreendido. Cada um apressado por saciar sua própria fome enchia a boca feito animal. Mas, por encanto, o alimento sumia antes de ser mastigado. Aline, sem forças e ferida, manteve-se afastada, aguardando pacientemente pela vez. Observou preocupada que daquele jeito nada sobraria e todos continuariam com fome. Viu porém, que o velho bebum conseguiu se alimentar com um pedaço de linguiça que Alaor lhe repassou. Lembrou-se do discurso do padre na última Páscoa e gritou:

Parem todos!... Desse jeito não vai sobrar nada e ninguém vai se alimentar. Vocês precisam repassar a comida. Só se alimentem da comida que lhes foi passada, como fez o velho Chico... Ou o alimento continuará sumindo na própria boca!

"Dito e feito!... Afinal de contas, de que adiantaria se livrar de César e sua gangue para depois continuar cada um por si?" - pensou Aline.

Sem que ninguém se aproximasse dela, a moça ouviu um sussurro do lado esquerdo:

É preciso dar o que não tem ou não se acredita ter...


*                   *                    *

Se as 12 pessoas restantes no oásis aprenderam forçosamente a dividir para sobreviver, faltava-lhes transformar esta prática em sentimento fraterno. Mas ali, poucos ainda possuíam algum sentimento. Eles acreditavam que a supressão das emoções seria fundamental para sobreviverem, o máximo possível, naquele ambiente desolador. Falava mais alto o instinto de sobrevivência em cada ser.

Mais uma vez, Aline percebeu algo: A desintegração de seus sete agressores ocorreu justamente quando eles não quiseram mais morrer. Justamente quando se sentiram felizes e poderosos donos do deserto, desejando dar um jeito de viver e reinar naquele inferno. Mais uma vez, sem que ninguém se aproximasse, um novo sussurro se fez ouvir por Aline:

Para que morte lhe liberte desse mundo, primeiro é preciso acreditar que o tem nas mãos...

Quem é você que me sussurra? O que quer que eu faça? - perguntou Aline em pensamento.

Palavras sussurradas são como pérolas sorrateiras - respondeu o sussurrante - Se essa gente faminta optou por agir como porcos, que valor dariam às pérolas?

*                    *                    *

Oito meses passaram reduzindo o tamanho do oásis a 100 m2. A lagoa resistia, mas ficou com apenas de 3 metros de diâmetro. A fome, no entanto, aumentou, obrigando os 11 homens a cavalgarem cada vez para mais longe. Iam às buscas de algum alimento, mesmo que vencido. A água da lagoa perdera a qualidade e só era bebida em último caso. Durante meses, a alimentação precária não deixou que fosse notada a gravidez de Aline, nem por ela mesma. Perto de parir, no entanto, sua barriga ficou indisfarçável. A mulher que engravidou no estupro iria parir na desolação. Aflita, nunca mais ouviu sussurros e juntamente com os "porcos", só conhecia uma regra de sobrevivência: repassar as parcas migalhas ou ver a comida sumir. Num repentino acesso de raiva, jogou uma pedra no espelho da lagoa e percebeu que as ondas circulares provocadas pelo choque, estranhamente tomaram a direção contrária. Elas seguiram das bordas para o centro da lagoa. Estranhou o fato, mas banalizou o susto pensando: "Deve ser é mais um desses fenômenos mágicos que vêm ocorrendo..." Logo, a gestante assustou-se de verdade ao perceber que pedra parecia ter aberto um furo no fundo da lagoa. Lentamente, toda a água começou a escorrer para ali, feito o ralo destampado de uma pia.

Quando amanheceu no sexto dia do oitavo mês, restavam apenas capim e árvores secas no oásis moribundo. A lagoa secou e se transformou em um poço, cavado com muito sacrifício pelos homens magros e sem vigor. Dali saía a água para os animais que também emagreceram. Naquele dia, pouquíssimo alimento foi encontrado e dividido no fim da tarde. Todos comeram sem nada dizer. Mas uma vez eles negavam seus sentimentos para não chorar e resistir naquele contexto.

Na manhã seguinte, ninguém teve força para procurar comida. Permaneceram escorados nas árvores secas, totalmente cansados. Eles queriam secar feito as árvores, mas essa mágica não lhes foi concedida. Foi então que os seus olhares secos perceberam no céu uma faixa de azul surgindo por detrás da última montanha. Saídos de trás de um morro próximo, surgiram oito cavalheiros imponentes que atiravam algo sobre o solo. Alaor e Aline gritaram por socorro com a pouca voz que possuíam. Viram, aliviados, que dois dos cavaleiros vieram em sua direção. Mas os homens não pararam para socorrê-los. Eles apenas atiraram pérolas que ao tocar no solo se multiplicavam e se espalhavam em todo entorno. Pelo chão seco do vale se espalhavam as pérolas e ninguém do extinto oásis entendeu o que ocorria.

Água!... Comida!... - gritavam, enquanto os cavaleiros apressados se afastavam.

Malditos nos trazem pérolas, quando estamos com fome e mortos de sede! - espraguejou o velho bebum.

Aline percebeu o reflexo das pérolas sobre o solo seco. A cintilância se estendia até onde sua vista alcançava. Justamente naquele momento, Aline sentiu as contrações do parto. Pediu ajuda. Um desastrado Alaor esqueceu de suas próprias debilidades e foi ampará-la. Enquanto o neném nascia, Aline não saberia dizer o que doía mais: o corpo no parto ou a alma de quem pari na desolação. O choro forte fez com que todos esquecessem de seus flagelos e se aproximassem para ver o bebê.

É uma menina! - Alaor falou, enfim sorrindo, depois de muito tempo. Como vai se chamar?

Pérola! - disse o velho Chico, abaixando para colher uma e entregando à Aline que em silencio aprovou.

Com cuidado, Alaor acomodou Pérola sobre o peito de sua mãe. Acalentada pelo calor de Aline, Pérola parou de chorar. Então foi a vez de Aline libertar todas as lágrimas aprisionadas nos últimos oito meses. Ao seu redor todos choraram: Alaor, Chico e os jogadores do Acesita. Alguns que àquela altura pensavam nem ter forças para respirar direito, choraram feito crianças. Eles estavam redescobrindo a emoção e resolveram vivê-la pelo resto de tempo que tivessem de vida. Foi quando o choro daquela gente se espalhou incrivelmente pelo chão, multiplicando-se e formando ondas rasteiras que se banharam todo vale. Feito água de chuva, o choro envolveu as pérolas espalhadas e delas brotaram e cresceram, em segundos, belíssimas árvores reflorestando Timóteo. Outras pérolas deram à luz animais, recompondo o paraíso natural do interior mineiro. A pequena faixa de azul no céu se ampliava em direção ao seu centro onde surgiaram chumaços de nuvens.

Os 11 homens estupefatos, ainda estavam debilitados pela fome e sofrimento. Mais uma vez eles tentavam entender o que presenciavam. Dessa vez, no entanto, não era tragédia o que viam. Onde a lagoa secou, voltou a correr o rio e, para amainar a fome, surgiram ameixeiras carregadas de frutos. Imediatamente os homens famintos colheram as ameixas e, como já sabiam, trataram de compartilhá-las primeiro. Desta feita, no entanto, não fizeram isso apenas pelo medo do alimento sumir. Fizeram com o sentimento resgatado no choro. Ofereceram os primeiros frutos para a Aline e depois se sentaram para uma refeição coletiva.

Algo surpreendente ainda estava por ocorrer: ao provarem as belas ameixas doces e robustas, os homens também ficaram robustos, restabelecendo-se milagrosamente. O próprio Chico voltou a se sentir como no tempo de jovem que não bebia, tocando em si mesmo para acreditar. Perceberam, surpresos, que dentro das ameixas não havia caroços e sim, pérolas. As mesmas que quando atiradas se multiplicavam e se espalhavam pelo chão. Lembraram-se dos cavaleiros atiradores de pérolas.

Revigorada, Aline amamentava a sua Pérola. Pensou que ouviria novos sussurros, mas não era mais preciso: Aqueles homens já não eram mais porcos famintos e entendiam o que deviam fazer. Bastou que um olhasse para o outro e que todos olhassem para o céu. Foi quando Mário, o capitão do time de futebol do Acesita enfim mostrou sua liderança, antes adormecida:

Alaor e Chico, nós só temos seis cavalos então vocês não precisam ir... Fiquem aqui com Aline e Pérola que vão precisar de vocês. Eu escolherei mais cinco dos meus e nós vamos fazer o que fizeram conosco: semearemos estas pérolas onde houver destruição.

Mário apontou na direção onde o céu permanecia alaranjado e ordenou a seus homens que recolhessem todas as pérolas e alimentasse com ameixa os cavalos que logo ficaram robustos. Os novos cavaleiros atiradores de pérola atravessariam o vale, agora verde, em direção ao próximo deserto de barro. Semeariam pérolas nos solos que secaram, parodiando a face dos homens que viraram porcos famintos. Pérolas, lágrimas suprimidas por quem se isenta do sentimento.

No próximo deserto estariam outros homens que por conter o choro se tornaram porcos pisoteando pérolas e sentindo fome.

Pérolas-sementes que, pacientes, aguardariam no chão pela rega de um novo choro.
Choro que cedo ou tarde virá, derretendo a máscara de suíno do homem.
Homem que tem medo de admitir o medo, mas que diante do fim irá chorar e reconstruir o mundo.

*                   *                    *

Quando acordou na manhã seguinte Aline não tinha mais casa, celular, pai ou noivo. Ao seu lado, na cabana improvisada estava Pérola, a primeira nativa de uma terra renascida.

Abraços!                                                                                             Página Principal: clique Aqui
Bira.




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