quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Quatro Mulheres Curtas

Reuni nesta postagem 4 crônicas curtas escritas em outubro e novembro de 2011. Elas descrevem mulheres fictícias, ou nem tanto...

Colagem com recorte de imagens da internet e as pinceladas de Van Gogh - o gênio morreu sem conhecer o sucesso: foi sustentado pelo irmão - aqui referido na crônica III.


Quatro Mulheres Curtas

Amigos;

I - Ana Sentiu Saudade

Naquela manhã, Ana acordou, mas permaneceu uma hora deitada sob impacto do sonho confuso que tivera...

No sonho, duas espirradeiras carregadas de flores rosadas emolduravam a varanda da casa onde nasceu e viveu durante a infância. Parecia um cenário de filme romântico. Seus pais formavam um jovem casal que, na namoradeira, trocavam carícias e planejavam o futuro. Ela, uma criança que no jardim preparava comidinha para suas bonecas. Pedaços do sol vazavam entre as folhas de um cajueiro e dançavam pelo chão. O chão da terra batida, da folha seca, da dormideira e do gongolô. O chão desprovido asfalto ou cimento, onde zunia o peão e as gudes se chocavam. Onde flores suicidas se atiravam, só porque não foram presas entre os cabelos negros de sua mãe.

Eis que também despencou uma chuva violenta e impossível, destruindo o belo cenário e arrastando essa mãe. No repente, amendoeiras sombrias tomaram a vez do jardim e o sol amedrontado se escondeu atrás da última montanha. Ana ainda tentou recolher as bonecas e procurar um abrigo, mas elas se transformaram em pombos mortos. O susto fez Ana apunhalar o ar com um grito agudo e de eco infinito, até que seu pai a acudiu:

– Calma filha... Vamos sair daqui!

Quando Ana olhou para o pai ele já não era mais o jovem que namorava minutos atrás. Aparentava ter 50 anos. Percebeu que ela própria não era mais criança – tinha, corpo, voz e consciência de adulta. Percebeu que a tempestade sumiu e tudo mais desapareceu, restando apenas os dois numa sala sem cor, paredes ou limites. Abraçou o pai saciando uma enorme saudade, então lembrou que ele morrera há 10 anos e acordou. Seus olhos se abriram em lágrimas que a fronha solidária bebeu.

Naquela manhã, Ana acordou, mas permaneceu uma hora deitada sob impacto do sonho confuso que tivera... #

Os elementos se fundem e se transformam na obras do holandês M. C. Escher; 1898-1972 - sobre ilusões de ótica, aqui referido também na crônica III.



II - Ana Cíclica

Era sempre assim; cansada de ficar deprimida, Ana começava um novo ciclo da vida reinventando seu dia a dia. Desta vez as escolhas foram aulas de Pilates, Alemão e um curso de pós-graduação. Mudou de bairro, ganhou novos amigos, renovou o guarda-roupa e rasgou papéis, muito papéis... Desfez-se de livros e CDs, apagando vestígios. No afã de mudança encheu sacos e mais sacos de tralhas, que os catadores de lixo disputaram feito tesouro. Se tivesse mais dinheiro, trocaria de carro. Cortar os cabelos, no entanto, não foi problema:

– Então aproveita e pinta de louro! – Ordenou ao cabeleireiro.

Concluído esse processo tudo passou a ser novidade. Desde os gestos simples como pentear cabelos encurtados ou encontrar a geladeira que mudou de lugar, até decorar novos nomes de gente, de rua ou novos itinerários... Aos poucos uma nova rotina seria estabelecia: Dias agitados e noites calmas. Agora sim, Ana acreditava em seu eco quando falava de auto-estima.

Seus novos compromissos eram sagrados. Tinha medo de não cumprir algum e criar um efeito dominó, onde uma pedra derruba a outra – algo bonito de se ver, como as ressacas, desde que se esteja do lado de fora. Quando os dominós representam os pilares da vida, no entanto, a graça vira desgraça e as ondas da ressaca arrastam seu próprio corpo.

Foi quebrando compromissos que uma amiga de Ana caiu no vazio e sentou-se num bar. Experimentou Bossa Nova, bebidas e sorrisos irônicos. Gostou e lá ficou, até hoje... Mas Ana não gosta de bar ou ironia. Ela só quer cumprir esse ciclo da vida até que a depressão lhe roube a paz, dizendo que é hora recomeçar...

Ana cíclica deve ser viciada em recomeço. #

III - Pirulitos ou Cigarros

Todo santo dia, o irritante choro da pequena Ângela deixava sua mãe embaraçada diante dos vizinhos. Quando contrariada, a criança imediatamente mudava de cor. Seus olhinhos azuis avermelhavam e transbordavam um pranto que também escorria pelas narinas e fugia pelos poros. Não havia muito que fazer diante do fenômeno, então sua mãe recorria aos pirulitos coloridos, guardados dentro de um pote de emergência. O açúcar acalmava a menina, distraía sua birra e devolvia sua cor.

Todo gesto de Ângela visava recompensa ─ foi assim que aprendeu enquanto crescia. Logo, os pirulitos não mais supririam sua insatisfação. Já adolescente, passou a chorar para dentro as lágrimas que ninguém via. Não transpirava ou mudava de cor, apenas empalidecia. Como um espelho d’água de um traiçoeiro rio, sua pele clara escondia uma corrente de emoções.

                       
                        *                         *                          *

Todos na rua se lembram da tarde em que Ângela surgiu no portão de sua casa. Com as curvas de seu recente corpo de mulher dando formas ao vestido, lançou nos lábios um tímido sorriso e disse “boa-tarde!”. A resposta veio em coro, como se fosse ensaiada pelas vizinhas que trocavam fuxicos no portão ao lado, pelos aposentados que jogavam carta adiante e pelos meninos que, sem perceber, interromperam uma pelada improvisada no asfalto. A partir daquele momento todo bairro notou e se encantou com a beleza da mulher recente.
Além do azul-encanto, havia mistério nos olhos daquela moça. Anos de choro escorrido pra dentro formaram oceanos em sua alma, onde habitavam sereias silenciosas: Seus olhos eram o portal de acesso ao lar das sereias que ameaçam cantar. Nos demorados banhos matinais, Ângela se assemelhava às sereias... Ah, se todas resolvessem cantar!...


Três Décadas Depois...

Na tumultuada e irregular calçada de Madureira uma mulher tropeça, perde o equilíbrio e cai. Um prestativo rapaz a socorre prontamente enquanto um senhor recolhe sua bolsa e os embrulhos de compras espalhadas no chão. Assustada, a mulher não dizia nada quando um comentário jocoso foi ouvido entre os passantes:

─ Olha só: Ela deixou cair tudo menos o cigarro que continua na mão!

Outro moço, com roupa de enfermeiro, a amparou perguntando se estava tudo bem. Estava, a mulher respondeu mais com os olhos do que com a voz. A débil mulher tinha um forte cheiro de cigarro e um pouco de descuido, mas... Aqueles olhos azuis...

─ Nossa!... ─ pensou o rapaz ─ Essa mulher deve ter sido muito linda!

─ Obrigado meu filho! Eu me chamo Ângela. ─ a mulher falou finalmente:

─ Sabe, quando eu era criança caía no choro, por muito menos que isso. Então minha mãe me dava um pirulito para compensar. Hoje fumo cigarros quando perco o equilíbrio, e como você pôde ver, isso não me impede de cair de novo...

Ângela falou por uns vinte minutos para o jovem hipnotizado pelo seu olhar de oceano. Depois agradeceu de novo e seguiu seu caminho. De repente, sentiu uma vontade incontida de cantar. Foi quando jogou fora os cigarros e entoou o canto das sereias. A emoção do canto fez seus olhos liberarem anos e anos de pranto. Contagiado, o céu não se conteve e, soluçando raios, fez descer copiosa chuva que alagou Madureira. Enquanto Ângela sumia na curva da esquina os seus últimos cigarros foram arrastados pela enxurrada e engolidos pelo ralo. #


IIII - E Aline Descobriu o que é Amar!

Ato I - Ilusões de Ótica

O vento frio faz mover as sombras na madrugada e Aline tem impressão que há dois homens parados, a 200 metros, na penumbra da esquina. Se quiser chegar em casa, vai ter que passar por ali. Respira fundo e se benze na rua deserta:

– E se eles forem assaltantes ou almas penadas? – aflige-se.

Cautelosa, diminui o ritmo dos passos enquanto o coração acelera. O vento fica mais frio e o tempo quer congelar. Quando chega a 50 metros da esquina, no entanto, percebe que os “homens” nada mais eram que silhuetas de arbustos recém podados. Ufa!... Foi apenas um susto!

Na segurança do lar, antes de dormir, Aline pensou sobre a ilusão de ótica ocorrida. Lembrou também que na manhã anterior, próximo à estação do metrô, havia um homem caído e torto, parecendo bêbado ou drogado. Pensando melhor, o homem também poderia estar sofrendo uma convulsão, mas quem pensasse assim se veria obrigado a socorrê-lo... Então todos preferiram vê-lo como drogado para não se atrasarem na chegada ao trabalho.

Ato II - Metamorfose de Aline

Aqueles pensamentos provocaram um sorriso de amarga ironia em seu olhar que repousou na parede, mais precisamente, sobre uma reprodução de gravura de Escher – o mágico da ilusão. Naquela gravura haviam lagartos que viravam favos, que pariam abelhas, que ganhavam o céu, onde Aline vagou. Na vagância lembrou das belas paisagens panorâmicas do Grand Canyon, onde a mega-distância transforma pedra e terra seca numa vista deslumbrante. Foi quando o sono chegou e Aline dormiu, e sonhou.


Quando acordou, Aline já não era a mesma. Ao arrumar-se, diante do espelho, fez tudo igual, mas de um jeito diferente. Pela primeira vez na vida, arrumou-se para si mesma. Nem quis saber o que iriam pensar da sua camisa vermelha!...

Na sala ao lado a TV exibiu “Love Of My Life”, com Freddie Mercury regendo 250 mil pessoas no inesquecível show do Rock in Rio’85 – um fantástico exemplo de sintonia e consagração. Ironicamente, no mesmo ambiente havia um poster dos Doze Girassóis de Vicent Van Gogh, um top10 da pintura, que em sua época não obteve a mesma consagração do ídolo do rock...

– Como isso foi possível? – argüiu-se inconformada – Um gênio da pintura só ser reconhecido 50 anos após seu suicídio!... Será que na penumbra do passado os amarelos de Vicent não saltavam das telas para as almas das pessoas? Será que a nas ruas escuras das mentes fechadas, milhares de arbustos se revelassem fantasmas – como os assaltantes da esquina – e o povo assustado nem percebesse conceitos novos de beleza?

Ato III - Entendendo o que é Amar

Aline não obteve resposta às suas perguntas. Só sabia que apesar de tudo estava feliz, uma felicidade sem aparente explicação. Então decidiu juntar os fatos, como peças de quebra-cabeça, encontrando algumas respostas:

1- Se de perto os algoses são apenas arbustos e, de longe, pedra e barro se covertem nas mais belas paisagens, bastaria situar-se na distância certa para se livrar dos sobressaltos ou perceber a beleza das coisas.

2- Quando o povo tem pressa, não importa se você está bêbado ou sofrendo uma convulsão, mas é preciso amar as pessoas do jeito que elas são.

Quando arrumou-se para si mesma, Aline libertou-se do julgamento alheio e manteve-se ereta. Era preciso ficar de pé, pois se caísse no chão, convulsiva, seria pisoteada feito bêbada por sapatos apressados. Aceitou o fato e substituiu aquele sorriso de amarga ironia pelo brilho do olhar de quem ama incondicionalmente.

Como as abelhas de Escher Aline se libertou, ainda em vida! #

Abraço!
Bira.



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