Memórias Póstumas de Um Corredor - Parte I

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(...) É necessário estar morto para as memórias saírem do túmulo e despertarem alguma atenção. Eis o lado bom de ser defunto!... Adquire-se respeito - talvez porque as pessoas tenham medo que a alma penada lhes puxe o pé, no meio da noite (...)

Imagem composta por recortes de fotos da internet, utilizando os apps Gimp e Paint - Bira, 29/10/15.

Amigos!

Memórias Póstumas de Um Corredor - Parte I

Introdução (da parte I)

Morto. É assim que me sinto ao escrever esta postagem. Vai fazer um ano que não corro e nem melhoro da "minha" lesão. Coloco a palavra "minha" entre aspas para exorcizar a má sorte. Sei que as aspas não curam, mas eu me nego a dizer que essa fascite plantar é minha... Não é! Fascites plantares não pertencem a ninguém!... Elas são como um encosto que ao invés de subir nas costas do oprimido (fazendo dele um cavalo) grudam nos seus pés (feito ferraduras). Eu que já me denominava um corredor pangaré, agora me vejo ferrado em todos os sentidos.

Além dos pés, as fascites atacam todo o corpo e a alma. Imagino elas avançando lentamente, feito uma sombra, partindo das plantas dos pés e subindo pelas pernas. Elas sugam a tonicidade das pernas, que ficaram ociosas, e chegam à barriga, que ganha volume. Esse volume sufoca o orgulho de qualquer corredor. Quando o efeito sombrio encobre a face, o bom-humor do corredor desaparece.

Corredor com fascite só corre quando um sonho lhe socorre. Ele só treina com os olhos, no facebook dos amigos. Ele só está vivo enquanto sonha, se acorda, está morto... E foi assim que eu me tornei um defunto moderno, psico-digitando aqui minhas memórias... Então vai:

Capítulo I - O Retorno às Corridas

Em 2007, quando eu fiz 48 anos, proclamei solenemente, para que minha mulher e filhos ouvissem:

-- Vou voltar a correr!!

Recebi como resposta uma sonora e coletiva gargalhada. Não que eles fossem debochados - confesso que o debochado da família sou eu - mas é que eu caíra na descrença de tanto repetir aquela frase. Mesmo não tendo razão, eu me senti humilhado. Engoli minha réplica, mas reafirmei em pensamento:

-- Eu vou voltar sim!... Vocês vão ver!!

E viram. No dia seguinte eu vesti o short e os tênis - que estavam encostados - e fui correr no final da tarde. Era incrível: Depois de mais de vinte anos, eu estava correndo de novo!... Fiquei eufórico em poucos minutos e desabalei num trajeto de oito quilômetro, pelas  ruas do bairro. Lembro-me, como se fosse agora, da maravilhosa sensação de voltar a correr.

-- Como pude parar por tanto tempo?" - eu pensava e delirava: -- Eu nasci para correr... Veja como estou correndo forte depois de tanto tempo?..." - dizia para mim mesmo.

Cheguei em casa decidido a nunca mais parar, mas não seria bem assim...

Capítulo II - Benditos Joelhos!

Acordei na manhã seguinte com as pernas doloridas, coisa que eu já esperava. O que eu não esperava foram as dores nos joelhos, que quase me impediram de caminhar na escada. Imediatamente lembrei que os joelhos que me fizeram parar por tantos anos, e desanimei. Dois dias depois, no entanto, eu parecia estar bem e repeti o trajeto. Mas na manhã que seguiu, meus joelhos nem dobravam e eu parei... Parei, mas não estava entregando os pontos: fui procurar uma academia para fazer reforço muscular nas coxas e panturrilhas. Baseei-me no exemplo do meu ídolo do futebol, Zico, que aliviou a contusão dos joelhos reforçando a musculatura das pernas... E não é que deu certo?!... Em pouco tempo eu estava definitivamente de volta!

Capítulo III - Voltinhas na Oliveira Belo

Para quem não conhece, a Avenida Oliveira Belo fica na Vila da Penha. No meio dela passa um rio, margeado por uma pista, com 1.700 metros, para corrida e caminhada. Experimentei trotar ali e gostei, voltando todos os dias. Eu tinha um medo tremendo de desistir, e me ver rodeado de gente seria a estratégia. No trabalho um amigo começou a me emprestar revistas de corrida e eu fiquei de queixo caído... Era como se eu tivesse saindo de uma máquina do tempo, oriundo dos anos 80, para deparar com toda tecnologia esportiva dos tempos atuais.

"Tênis de pisada", "tecidos tecnológicos" e "frequencímetro" eram apenas algumas das expressões de um novo mundo deste esporte. O crescimento da economia fazia do Brasil um mercado promissor, bem diferente daquele Brasil dos anos 80, que assistiu a Maratona do Rio nascer e morrer por falta de patrocínio. Na internet surgiam os blogs de corrida e o orkut passava a vez pro facebook. As capitas do país ficavam cada vez mais repletas de provas e os meus olhos nem piscavam, na ânsia de beber toda informação desse mundo que borbulhava.

Capítulo IV - Corrida Leblon - Leme

(na foto: Corrida Leblon Leme, jan/08)

Li na Revista O2 que estavam abertas as inscrições para a primeira corrida de 2008. Motivado, garanti o meu retorno às provas de rua que descrevi, aqui no blog, desse jeito:

(...) Duas décadas depois, reencontrei a velha namorada - a Corrida. Era manhã de domingo no Leblon e eu já tinha 48 anos, quando larguei na Leblon-Leme. Fiquei tímido para puxar assunto... Ela, Corrida, continuava jovem e mais linda do que nunca. Minha juventude, no entanto, se resumia à atitude de estar ali. Fiquei surpreso quando me vi em seus braços. Tomei banhos de suor e auto-estima. (...)

Depois dessa prova eu me inscrevi em todas as corridas de 10 km. Coloquei na cabeça que correria abaixo de 40 minutos, apesar de quase cinquentão, e cheguei perto. Só não consegui quebrar essa marca porque não sou suficientemente disciplinado. Saí dos 10 k para as meias maratonas, em 2009. Em 2010, estava de volta ao meu país: A Maratona!... Como o descrito num trecho de outra postagem deste blog:

(...) Maratona não é uma prova e sim um lugar. Um lugar que se desloca pelo mundo e abriga pessoas felizes, mesmo que estejam em sofrimento físico. A Maratona é minha terra! Quando eu digo "sou maratonista", refiro-me à minha nacionalidade. Meu país Maratona abriga pessoas das mais diversas raças, culturas e níveis sociais. Meu país Maratona me torna igual, lado a lado os com demais corredores, trocando forças pelo difícil trajeto. Lembro-me de quando completei a Maratona de Buenos Aires 2010 e não contive um forte choro, após cruzar a linha de chegada. Um argentino que veio logo atrás me amparou com um abraço de irmão, dizendo não menos emocionado que eu:

- Campeón... Eres un campeón!...

Desabei em soluços sobre seu ombro solidário e depois nunca mais o vi. Meu irmão argentino e eu somos maratonistas, habitantes de um mesmo país que tem 42.195 metros de emoção. (...)

Capítulo V - Memórias do Defunto Corredor

É necessário estar morto para as memórias saírem do túmulo e despertarem alguma atenção. Eis o lado bom de ser defunto!... Adquire-se respeito - talvez porque as pessoas tenham medo que a alma penada lhes puxe o pé, no meio da noite. Mas fiquem tranquilos: não puxarei o pé de ninguém! Bastou-me ter, em vida, uma fascite que não quisesse largar do meu próprio pé. Agora, morto, só lhe peço atenção para a minha história...

Clique aqui para ler a Parte II...

Abraço!
Bira.



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