O Mundo Não Precisa de Você!

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(...) Volta e meia Marcelo se escondia da crise por traz da transparência dos copos de Whisky ou de um leque de cartas, nas rodadas de pôquer (...)

Marcelo sempre buscou amparo em Marly, para se reerguer, até que um dia... imagem: frascos da Colonia Pinho Campos do Jordão - Vintage. 

O Mundo Não Precisa de Você!

Amigos!

O olhar de Marcello se arrastava pelo chão. Entre guimbas de cigarros e chicletes derretidos; entre panfletos de agiotagem, de compra de ouro ou das casas de massagem. Se lhe fosse possível erguer a cabeça, veria no céu uma massa de nuvens cinzentas semi-oculta pelos prédios da cidade. Se chovesse naquele momento, ele não sentiria. Mesmo que a água da chuva se misturasse aos papéis e guimbas do chão. Mesmo que a massa de nuvens se transformasse em massa de lama e lixo, entupindo ralos e rios, poluindo a baía. Naquele momento, Marcello era um homem sem alma, conduzido por Marly, sua esposa, pelas ruas do Centro da Cidade.

Enquanto os dois passavam por uma área menos nobre do Centro não percebiam as lojas decadentes que vendiam quinquilharias e CDs antigos, nem ouviram a voz de Taiguara que ressurgiu de uma das lojas cantando “Universo no Teu Corpo” – o velho sucesso dos anos 70 que traduzia, desde lá, o desencanto de Marcelo pelo mundo e sua redenção nos braços de Marly – “não me deixe um só minuto sem amor...” De fato, Marly nunca o deixou. Continuou ao seu lado nos movimentos estudantis, durante o namoro, e suportou seu gradativo alcoolismo-de-fim-de-semana nos últimos 15 anos do casamento de três décadas. Sua vida alternou entre períodos de crise ou de intensa alegria. Mas as alegrias eram tão intensas que compensavam a próxima crise.

Os quinze dias de férias com a esposa na Europa, em meados de 1976, conceberam um casal de gêmeos nascidos no ano seguinte. As crianças fizeram os olhos e a mente do jornalista Marcelo brilharem. Tal brilho refletiu nos seus artigos e crônicas para o encanto do público. Se a economia do Brasil descia dos patamares do Milagre Econômico por um elevador, Marcelo subia os patamares da fama no elevador ao lado. Com o tempo, seu nome foi consagrado e o sucesso passou a ser algo normal. Foi justamente no topo de um sucesso normal que a crise interna lhe assaltou em depressões periódicas. Volta e meia Marcelo se escondia da crise por traz da transparência dos copos de Whisky ou de um leque de cartas, nas rodadas de pôquer. Nestas fases, bebida, cigarro e jogo roubavam Marcelo de uma Marly paciente que repetia em pensamento o provérbio herdado de sua mãe: “Não há mal que sempre dure...”

Entre “males” e “bens”, altos e baixos, embora no topo, eles criaram seus filhos que cedo casaram. Um golpe mortal sobre o casal foi desferido no peito de Marly: a Síndrome do Ninho Vazio que aprofundou suas rugas. Ultimamente, aquela mulher – bóia de salvação do marido – mal conseguia manter-se à tona. Enquanto isso, nas vagas do desespero no mar da jogatina Marcelo se debatia e de novo se afogava. À deriva, no fluxo e refluxo das ondas de dívidas e arrependimento, clamou por perdão. Mais uma vez surgiu cabisbaixo e nem percebeu o olhar sem brilho da esposa fragilizada que diante de uma nova derrocada do marido desabou sobre o sofá:

– Já estou cansada, não tenho mais ânimo!... Precisamos de ajuda! – rendeu-se Marly. 

Recorrer a um grupo de ajuda e terapia seria humilhante demais para o brilhante Marcelo, mas desta vez não tinha outro jeito. Marly entregara os pontos e com as poucas forças que tinha determinou: “Te levo lá na terapia amanhã mesmo!”

Na manhã seguinte foram para o Centro, onde o grupo funcionava. Foi quando o peso da vergonha manteve olhar de Marcelo preso ao chão e não permitiu que uma Marly aos frangalhos percebesse, no trajeto, a voz de Taiguara cantando a música de sua vida.




Marcelo ingressou no grupo e parou de jogar, e parou de beber, e parou de fumar, e começou a pensar e criticar o seu próprio mundo ao longo de quatro anos. Aposentou-se, escreveu dois livros e começou a perceber sua mulher. Quando se desfizeram as nuvens da fumaça dos cigarros surgiu-lhe a vida em imagens claras. Quando um leque de cartas deixou de ser erguido à sua frente surgiram os olhos de Marly. Quando o dourado do Whisky deixou de encher seu copo o dourado de suas moedas não foi mais bebido pelos agiotas. Marcelo recuperou-se.

Aos 62 anos Marcelo teve a impressão de um renascimento. Aposentado, filhos mais que criados e um amor refeito com a mesma mulher. Certa manhã acordou e com gestos automáticos tomou banho e escovou os dentes. Quando ia fazer a barba, olhando para o espelho, começou a pensar em retrospectiva. Sentiu-se feliz, vitorioso e grato. Percebeu que era livre tanto quanto sua mulher que deixou de ser uma boia de salvação. Era livre para viver ou para morrer, portanto feliz.

O vapor quente do chuveiro embaçou o espelho apagando sua imagem. Marcelo inspirou-se, esticou o dedo indicador e escreveu na lousa de vidro embaçado uma frase libertadora: “O Mundo Não Precisa de Você!” Depois sorriu respirando satisfeito o ar úmido e abafado como quem respira o ar das montanhas. No banheiro, sentiu o cheiro refrescante das montanhas mas não estava louco: apenas fazendo a barba com o creme Pinho Campos do Jordão.

Abraços!
Bira.
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2 comentários:

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Bela crônica amigo Bira corredor e poeta showww como sempre vc arrasando, já lhe disse tu tens que por em prática o dom que Deus lhe deu escrevendo um livro para alcance multidóes. Dá uma olhada no blog da amiga professora e corredora ela escreve que nem vc falando de crôncias e corridas acesse:
http://desuorepoesia.blogspot.com

Lhe desejoboas festas que em 2012 Deus continue te abençoando rica e abundantemente com muita saúde para correr muitos Kms e continuando escrevendo aqui.

Um abraço,

Jorge Cerqueira
www.jmaratona.com

Dimas Lucena disse...

Parabéns amigo Bira. Seus textos poéticos são reflexões para a vida e o viver.